“Combater a Pobreza, construir a paz”
“Que o Senhor te abençoe e te proteja…que o Senhor dirija o Seu olhar para ti e te conceda a paz!”[1]. Esta é a bênção que, no Antigo Testamento, os sacerdotes pronunciavam nas grandes festas sobre o povo. Nós, hoje, voltamos a ouvi-la, solenemente proclamada na primeira leitura, enquanto pedimos ao Senhor que abençoe o novo ano que agora começa, nos proteja, nos conceda o dom da paz e nos torne seus construtores, com coração humilde e renovado.
Na plenitude dos tempos, recorda S. Paulo na Segunda Leitura, Deus enviou ao mundo o Salvador, nascido de mulher…nascido sujeito à Lei… para que recebêssemos a adopção de Filhos e nos libertássemos da escravidão da Lei[2].
E o Evangelho conduz-nos ao presépio onde uns Pastores chegam apressadamente. Encontram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. Não vêem nada de extraordinário, não fazem perguntas, mas reconhecem o Salvador que Deus enviou ao mundo e ficam ali, ao lado de Maria e José, a observar, admirados, extasiados, contemplando, em silêncio, naquela simplicidade tão majestosa, a obra maravilhosa que Deus operava em favor dos homens…. E logo correm a anunciar a outros a sua alegria, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto.
Maria, porém, a toda crente, “conservava todos estas palavras, meditando-os em seu coração”. Era a mulher – a Mãe! Aquela que gerou o Príncipe da Paz, está ali – humilde serva do Senhor! – Está ali, e de olhos postos no rosto do Menino, há silêncio de intuição e sabedoria, há silêncio de paz e de serenidade interior. Como primeira discípula do Senhor, que ela ilumine os nossos olhos para que saibamos reconhecer o Rosto do Senhor no rosto de cada pessoa humana e saibamos acolher, viver e construir o dom da paz, em convivência sadia, fraterna e respeitosa, nas famílias, na sociedade, entre os povos e as nações.
Como sabemos, por iniciativa do Papa Paulo VI foi instituída, em 1967, a celebração do Dia Mundial da Paz. Essa tradição foi mantida por João Paulo II e, agora, por Bento XVI.
Hoje fala-se muito de paz. Quase não há discurso que se preze ou debate que se provoque, que não deixe saltar, aqui ou a ali, mesmo por entre uns mísseis camufladamente apontados, umas frases politicamente correctas em nome do progresso, da qualidade de vida e da paz pessoal e social. Entrou na rotina. Em muitos palcos, porém, em muitos púlpitos e areópagos, soam a vazio e até incomodam pela forma e modos de uma linguagem agressiva, sem conteúdo nem sentimentos… E tantas vezes deixam revelar interesses pessoais ou de grupo: verdadeiros desafios de guerra ou apelos à paz podre de egoísmos instalados que humilham e ofendem terceiros…
Lembro-me do que afirmava João Paulo II: “O simples facto de a nomear [paz] com tanta frequência e por toda a parte, provoca talvez já uma sensação de saturação, de aborrecimento e, porventura, mesmo o receio de que isto esconda sob a fascinação da palavra, uma ilusória magia, um nominalismo apenas retórico e já gasto pelo abuso, e até mesmo um encantamento perigoso”[3].
Além disso, existem ainda aqueles que pensam que aquilo que “no fundo compromete a solidez da paz e o desenrolar-se da história em seu favor, é a convicção secreta e céptica de que ela é praticamente impossível; não passa de um sonho poético; de uma utopia falaz. Deseja fazer-se crer que aquilo que conta e vale é a força e a repressão. Mas a repressão não é a paz. A violência não é a paz. A acomodação puramente exterior não é a paz. A paz verdadeira deve estar fundada sobre o sentido da inviolável dignidade da pessoa humana, da qual dimanam intocáveis direitos e respectivos deveres”[4].
É esta paz que se tornou o ideal da humanidade; se tornou necessária, obrigatória e vantajosa. Não é uma ideia ilógica e fixa. Não é uma obsessão ou uma ilusão. É uma certeza; é uma esperança que tem por si o futuro da civilização, o destino do mundo”.
Mas então por que não existe a paz? Porque o homem se adia, não se renova, não se converte, não reconhece o outro como irmão… vive enterrado no seu egoísmo asfixiante e entende que a questão da paz é com todos os outros menos consigo próprio.
“As causas profundas da injustiça, da violência e da guerra estão no coração do homem … no coração de cada indivíduo, de cada um de nós, nas formas quotidianas de pensar e de agir”[5]. “É minha convicção profunda – dizia João Paulo II – é fio condutor da Bíblia e do pensamento cristão e é, estou disso persuadido, intuição de muitos homens de boa vontade, que a guerra tem a sua origem no coração do homem. É o homem que mata e não a espada ou, nos dias de hoje, os seus mísseis. O coração, no sentido bíblico, é a estrutura profunda da pessoa humana, nas suas relações com o bem, com os outros e com Deus. Não se trata prevalentemente da sua afectividade, mas sim da sua consciência, das suas convicções, do sistema de pensamento ao qual se sente ligado e, ainda, das paixões, que o homem se torna sensível aos valores absolutos do bem, à justiça, à fraternidade e à paz”[6].
“Existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e os povos”[7]. Há uma “gramática transcendente, ou seja, um conjunto de regras da acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, que está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus”[8].
Neste Dia Mundial da Paz, Bento XVI convida-nos a reflectir sobre o tema: “Combater a pobreza, construir a paz”. Começa por afirmar que “combater a pobreza implica uma análise do fenómeno complexo que é a globalização” cujas distorções são uma ameaça séria ao desenvolvimento, à luta contra a pobreza e a desnutrição.
Convida-nos a olhar para a crise alimentar que oprime os países pobres do mundo, crise essa que não é devida tanto à “insuficiência de alimentos”, mas aos “fenómenos especulativos” e à falta de “instituições políticas e económicas capazes de enfrentar as necessidades e as emergências”. Sendo a globalização “ambivalente”, deve ser “governada com sabedoria atenta”, pois, a “globalização por si só é incapaz de construir a paz e, em muitos casos, pelo contrário, cria divisões e conflitos”. Por isso, precisa de “ser orientada para um objectivo de profunda solidariedade que aponte para o bem de cada um e de todos”. No contexto do “desenvolvimento e cooperação internacionais” não são apenas as “questões técnicas” que interessam: a “luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres” que a enfrentem. O mundo dos ricos não pode tornar-se uma “casa dourada”, rodeada de “deserto e degradação”. No mundo global é cada vez mais evidente que “só se constrói a paz se se assegurar a todos a possibilidade de um crescimento razoável”. Para isto, é preciso que “se reserve espaço adequado para uma correcta lógica económica por parte dos agentes do mercado internacional, uma correcta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional”. A despesa com o armamento também preocupa Bento XVI: “Os ingentes recursos materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos, na realidade, são desviados dos projectos de desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais pobres e necessitados de ajuda”. Além disso, “um excessivo aumento de despesa militar corre o risco de acelerar uma corrida aos armamentos que provoca faixas de subdesenvolvimento e desespero, transformando-se assim, paradoxalmente, em favor de instabilidade, tensão e conflito”.
Alerta ainda o Papa para a emergência causada pelas pandemias da malária, turbeculose e SIDA em diversas zonas do mundo. “Os países vítimas de algumas destas pandemias, para lhes fazerem frente, vêem-se obrigados a aceitar condições que sujeitam as ajudas económicas à actuação de políticas contrárias à vida”.
Aponta o dedo às campanhas para a redução dos nascimentos e considera que o “extermínio de milhões de crianças não nascidas, em nome da luta contra a pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres entre os seres humanos” e não se resolve o problema da pobreza, pois “a população confirma-se como uma riqueza e não como um facto de pobreza”, argumenta Bento XVI.
A nossa Comissão Nacional Justiça e Paz, ao terminar a Audição Pública realizada em 8 de Novembro de 2008, deixou-nos algumas conclusões que são verdadeiros desafios ou provocações. Afirma que “numa sociedade democrática, a pobreza configura uma situação de violação de direitos humanos fundamentais. Primeiramente por negar às pessoas atingidas os recursos indispensáveis à satisfação de necessidades humanas básicas. E, em segundo lugar, porque priva os pobres das condições necessárias ao exercício dos seus direitos civis e políticos”.
“Cabe ao Estado, a nível central e a nível autárquico, um papel determinante na luta contra a pobreza, através da adopção de medidas, programas e projectos direccionados para prevenir as causas geradoras de pobreza e para minimizar as suas consequências”. Essas medidas, programas e projectos existem, mas funcionam menos bem. Além disso, a sociedade civil não pode desinteressar-se do objectivo da erradicação da pobreza. O sucesso das estratégias de luta contra a pobreza, implica dar voz e poder aos pobres na resolução dos seus problemas, incentivando-os à participação e fomentando as associações que integram pessoas de grupos sociais mais fragilizados e se fazem valer junto das instituições.
A pobreza não é uma fatalidade.
A pobreza faz sofrer muita gente, muitas famílias e, sobretudo, muitas crianças.
Só combatendo a pobreza construiremos a paz.
A existência de pobres que o são pela força das circunstâncias, angustia, revolta, gera violência e envergonha-nos a todos.
+Antonino Dias
Bispo de Portalegre-Castelo Branco
01/01/2009 – Sé de Castelo Branco
[1] Nm 6, 24-26
[2] Gal 4, 4-7
[3] João Paulo II, A Paz também depende de ti, Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1974.
[4] João Paulo II, A Paz também depende de ti, Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1974
[5] João Paulo II, A Paz e os Jovens caminham juntos, Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1985
[6] João Paulo II, De um coração novo nasce a paz, Mensagem para o dia Mundial da Paz, 1984
[7] João Paulo II, Discurso na ONU em 5 de Outubro de 1995, citado na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de Bento XVI, 2007, nº 4
[8] Bento XVI, idem, nº3