Quem tem ouvidos, que oiça. Mesmo sem apóstrofo, popularmente soa a 'coiça', sem que isso venha de coicear ou de escoicear. É uma questão de fones, fonemas e aglutinações…, por aí. Mas presumo que possa haver quem, explorado por terceiros, dê uns pinotes dos diabos só para reprimir o frémito de lhes retribuir uns ‘coices’ bem certeiros. É uma tentação que pode saltar às águas-furtadas do mais paciente e franzino dos mortais. Não para o concretizar ao jeito dos solípedes, que solípede não é, claro está. Mas ao jeito dos bípedes ou dípodes: o leitor faça o favor de escolher o termo de que mais goste enquanto eu vou ali espreitar quem era aquele respeitável ministro que prometeu dar ‘um par de bofetadas’ a dois ilustres trabalhadores desta horta nacional! Dizia ele que esse ‘par de bofetadas’ iria fazer muito bem aos dois destinatários e também a ele próprio pelo facto de lhas dar!… Como isso não aconteceu, acho que foi um grande prejuízo para toda a humanidade, pois ficamos sem saber qual o troco a restituir segundo a cartilha da justiça de Fafe. Antigamente, assim terminavam as festas populares que se prezavam de o ser. Sem pancadaria, a festa não era festa, não ficava história para contar!… Para esclarecer, sobretudo aqueles que até pensam que o leite vem do pacote, solípede, segundo um senhor Regedor do antigamente – uma autoridade local da qual já não se ouve falar! – e a quem foi pedido que respondesse a um inquérito nacional sobre quantos solípedes havia na área da sua jurisdição, ele respondeu que só havia três, colocando em dúvida um outro, mas acabando por concluir que esse outro não era mesmo. Para ele, solípedes eram o senhor presidente da comarca, que viera morar para ali, o senhor prior e a senhora professora, pois eram os únicos que usavam sapatos de sola. O mesmo não poderia afirmar sobre o senhor presidente da junta, que andava sempre de tamancos, como ele, e, às vezes, andava descalço, a pobreza era grande.

Mas esta conversa de chacha vem a propósito de quê? Sim, a propósito de quê? Não se enerve, caro leitor, tenha calma. Estamos no Campeonato Europeu de Futebol. Antes de entrar no jogo, como sabe, é preciso aquecer. Por vezes, durante e depois do jogo, é que salta o testo a muita gente: enerva-se, protesta, reivindica, altera o nome ao árbitro e ao treinador, enfim, aquece os fusíveis sem qualquer fair play que o dignifique. Os atletas, esses, sofridos, tristes e cabisbaixos à espera de que os deixem em paz, costumam dizer que é preciso corrigir os erros e levantar a cabeça, com esperança. Assim é que é, a esperança é a última coisa a morrer!

Agora, depois deste meu aquecimento e de entrar no relvado, vejo o Papa Francisco a sair lesto, como Mister urbi et orbi, a chamar a atenção para dois grandes desafios que o “movimento sindical deve enfrentar e vencer”. Falando aos italianos, eis os esquemas táticos que ele propõe a todos para que o jogo sindical seja de qualidade e capaz de consolidar o bem comum:

“O primeiro é a profecia, e diz respeito à própria natureza do sindicato, à sua vocação mais verdadeira. O sindicato é expressão do perfil profético da sociedade. O sindicato nasce e renasce todas as vezes que, como os profetas bíblicos, dá voz a quem não a tem, denuncia o pobre “vendido por um par de sandálias” (cf. Amós 2, 6), desmascara os poderosos que espezinham os direitos dos trabalhadores mais débeis, defende a causa do estrangeiro, dos últimos, dos “descartados”. Como demonstra também a grande tradição da Confederação Italiana Sindical dos Trabalhadores, o movimento sindical vive os seus grandes momentos quando é profecia. Mas nas nossas sociedades capitalistas progressistas o sindicato corre o risco de perder esta natureza profética e de se tornar demasiado semelhante às instituições e aos poderes que, pelo contrário, deveria criticar. Com o passar do tempo, o sindicato acabou por se assemelhar demais com a política, ou melhor, com os partidos políticos, com a sua linguagem e estilo. E ao contrário, se faltar esta típica e diversa dimensão, até a ação no âmbito das empresas perde força e eficácia. Esta é a profecia.

Segundo desafio: a inovação. Os profetas são sentinelas que vigiam do seu lugar de observação. Também o sindicato deve patrulhar os muros da cidade do trabalho, como sentinelas que vigiam e protegem quem está dentro da cidade do trabalho, mas que vigiam e protegem também quem está fora dos muros. O sindicato não desempenha a sua função essencial de inovação social se vigiar só os que estão dentro, se proteger só os direitos de quem já trabalha ou está na reforma. Isto deve ser feito, mas é metade do vosso trabalho. A vossa vocação é também proteger quem ainda não tem direitos, os excluídos do trabalho, e até dos direitos e da democracia.

O capitalismo do nosso tempo não abrange o valor do sindicato porque se esqueceu da natureza social da economia, da empresa. Este é um dos maiores pecados. Economia de mercado: não. Digamos economia social de mercado, como nos ensinou São João Paulo II: economia social de mercado. A economia esqueceu-se da natureza social que tem como vocação a natureza social da empresa, da vida, dos vínculos e dos pactos. Mas talvez a nossa sociedade não compreenda o sindicato até porque não o vê lutar o suficiente nos lugares dos “direitos do ainda não”: nas periferias existenciais, no meio dos descartados do trabalho. Pensemos nos 40% dos jovens com menos de 25 anos, que não têm trabalho. Aqui na Itália. Deveis lutar contra isto! São periferias existenciais. Não o vê lutar no meio dos imigrados, dos pobres, que estão sob os muros da cidade; ou então não o compreende simplesmente porque às vezes — mas acontece em todas as famílias — a corrupção entra no coração de alguns sindicalistas. Não vos deixeis bloquear por isto. Sei que já há algum tempo vos esforçais nas direções certas, especialmente com os migrantes, os jovens e as mulheres. E isto que digo poderia parecer superado, mas no mundo do trabalho a mulher ainda é considerada de segunda classe. Poderíeis dizer: “Não, mas há uma empresária, aquela outra…”. Sim, mas a mulher ganha menos, é mais facilmente explorada…. Fazei alguma coisa. Encorajo-vos a continuar e, se possível, a fazer mais. Habitar as periferias pode tornar-se uma estratégia de ação, uma prioridade do sindicato de hoje e de amanhã. Não existe uma boa sociedade sem um bom sindicato, e não existe um sindicato bom que não renasça todos os dias nas periferias, que não transforme as pedras descartadas da economia em pedras angulares. Sindicato é uma linda palavra que provém do grego “dike”, que significa justiça, e “syn”, juntos: syn-dike, “justiça juntos”. Não há justiça juntos se não for junto com os excluídos de hoje”.

Quem tem ouvidos, ouça o voz do Espírito!…

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 21-06-2024.

 

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