Chamam-se garatujas às primeiras expressões visuais do grafismo das crianças, a que alguns também chamam rabiscos e gatafunhos, diz quem sabe. São as primeiras ‘palavras’ da criança no papel, que é bom aplaudir, saber ler e interpretar, pois expressam os seus sentimentos, dão sentido ao seu mundo, vão revelando o seu desenvolvimento motor e criativo.
À falta de criatividade para inventar outras, vou assumir essas palavras para falar de garatujas e rabiscos de outra ordem, as quais também podem exprimir sentimentos e dar azo a muitas leituras e interpretações. Os seus autores, que neste caso não são crianças, não serão aplaudidos com um sorriso vaidoso e cheio de esperança, como aquele que os pais manifestam perante a genialidade talentosa dos seus filhos nessa arte de garatujar ou rabiscar. Não raro, isso sim, provocarão um sorrisinho irónico em quem os vê a exercitar tal prática, mesmo que o não seja no papel ou na parede. Por respeito contido e caridade operosa, se é certo que ninguém deixará explodir a gargalhada que lhe apeteceria dar, é capaz de, ainda que indevidamente, ceder à tentação de começar a ler o complexo mundo interior de quem garatuja ou rabisca assim.
Pressinto que o leitor esteja intrigado sobre onde é que eu quero chegar com toda esta conversa. Tem razão, mas tenha calma, por favor. Embora haja coisas mais importantes do que estas, estas não são de desprezar. Acredite, não é uma conversa de chacha. Para saltar dela, e sabendo eu que para filósofos meia palavra basta, vou pedir o apoio de São Mateus que, sem rodeios, escreveu assim, aquando da visita dos Reis Magos a Belém: “Entraram em casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, caindo de joelhos, prostraram-se diante d’Ele e adoraram-no. Depois, abrindo os seus tesouros, ofereceram-lhe presentes’, regressando a casa por outro caminho.
Presumo que o leitor já deu um salto de contente, ao jeito de Arquimedes de Siracusa, e gritou com estridente entusiasmo a acordar os vizinhos: “Eureka!”, descobri! Sim, sei que descobriu e não precisa de mo repetir. Todos sabemos que quem entra nos lugares onde está Jesus, deve saber entrar, estar e sair. A sua Mãe, que nunca estará por longe do seu Filho, também apreciará, pois, ‘quem meus filhos beija, minha boca adoça’, dizemos nós em gíria popular. Os Magos, entraram, caíram de joelhos e adoraram Jesus. Embora Jesus esteja presente de muitos modos entre nós, numa igreja, no sacrário, está de modo muito especial, vivo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Há quem entre, não sei se por devoção, se por curiosidade ou só porque sim, e não ajoelhe nem genuflita, respeitosamente, como os Reis Magos fizeram e a Igreja nos pede. Há quem faça umas garatujas ou rabiscos, às vezes a ameaçar uma queda pelo desequilíbrio provocado ao fazê-lo. Outras vezes fazem-no a correr, a conversar, a olhar para o lado, para os outros, para os ‘santinhos dos altares’, ou apenas o fazem por ver os outros a fazê-lo, sem saberem bem porquê. Confesso que não é bonito de se ver, até porque, com esse estado de espírito, não se sentirá a alegria do encontro, não se terá nada para oferecer a Jesus que tudo oferece, não haverá motivação para regressar a casa por outro caminho. Os gestos colocam o corpo em oração, tem o seu fundamento em Cristo, quase sempre exprimem o estado interior da pessoa. A Liturgia está cheia de sinais, símbolos e linguagem corporal e gestual. Quem nela participa, também participa através de gestos e atitudes. Estar de pé, por exemplo, é a postura de gente ressuscitada com Cristo Ressuscitado e presente no meio da assembleia. É sinal de respeito, delicadeza, atenção. Estar de joelhos é uma atitude de humildade, penitência e oração. A genuflexão, se bem feita, é também um gesto de reverência e oração profunda, devendo dobrar-se o joelho até ao chão. É um ato de fé em Jesus, ali presente, e um ato de humildade, pois, diante dele não somos ninguém. Além disso, é um momento de catequese para quem vê fazer esse gesto com recolhimento e dignidade. Estar sentado, embora também seja a postura de quem ensina com autoridade, é sobretudo a postura de quem escuta com atenção. E muita outra mensagem litúrgica passa por gestos, sinais e símbolos.
Se alguém, sem fé, entrasse, a certas horas, numa das nossas igrejas, para apreciar se, quem entra, lhe daria razões para acreditar, acho que sairia desiludido, talvez até sem aquela pitadinha de fé que ainda levava quando entrou!
Noutra dimensão, acontece coisa semelhante. Quando os nossos pais nos levaram à igreja para sermos batizados, o sacerdote e depois os pais e padrinhos, fizeram-nos o sinal da cruz na fronte. Esse sinal recorda o mistério pascal de Cristo, que tem no centro a cruz onde Ele deu a sua vida por nós. Quem faz o sinal da cruz, como deve ser feito, está a fazer uma profissão de fé batismal, trinitária, não pode ser uma garatuja. E muito mais se pode dizer sobre a importância desta linguagem gestual. É certo que, entre nós, muita gente já tem as dobradiças enferrujadas, os joelhos já não funcionam e o corpo anseia rapidamente pelo conforto do banco. Não é desses que falamos. Muito menos estou a falar de quem me leu até aqui. Todos, porém, temos de ajudar a que estes gestos sejam e signifiquem o que devem significar e ser.
Antonino Dias
Portalegre-Castelo Branco, 03-01-2025.