O homem das barbas, de Remelhe, Barcelos, que tudo fez para estar agora a caminho dos altares, não tinha papas na língua quer para anunciar Jesus Cristo, quer para defender a Igreja e o país, quer para enfrentar quem se metia onde não era chamado ou se aburguesava no faz de conta. Ensinava que o missionário deve levar “em uma das mãos a cruz, símbolo augusto da paz e da fraternidade dos povos, e na outra a enxada, símbolo do trabalho abençoado por Deus. Deve ser padre e artista, pai e mestre, doutor e homem da terra; deve tão depressa pôr a sua estola (…) como empunhar a picareta para arrotear uma courela de terreno; deve tão depressa fazer uma homilia, como pensar a mão escangalhada pela explosão duma espingarda traiçoeira”.
No dia 20 deste mês de outubro de 2019, a Igreja em Portugal, com a presença dos Bispos Portugueses e do Povo crente e sempre grato, vai prestar-lhe uma homenagem em Cernache do Bonjardim, Sertã, junto ao Seminário das Missões ou da Boa Nova, onde ele estudou. Este gesto em Dia Mundial das Missões quer assinalar o Mês Extraordinário Missionário e, utilizando eu as palavras do cronista João de Barros, quer assinalar também os “trabalhos de Hércules” que tantos missionários e mártires portugueses levaram a cabo por esse mundo além, enobrecendo e ajudando a escrever a nossa história: “Vós, Portugueses, poucos quanto fortes/Que o traço poder vosso não pesais/Vós que, à custa de vossas várias mortes/A lei da vida eterna dilatais” (Camões).
Torno presente o elogio que o Deputado Urgel Abílio Horta lhe fez no Parlamento em 1954. Assim:
“Sr. Presidente: pedi a V. Ex.ª o favor de me ser concedida a palavra para, como Deputado pelo Porto, falar de alguém que, não tendo ali o seu berço de nascimento, viveu, contudo, durante largos anos intimamente preso aquela cidade, pela sua alma, pelo seu coração, pelo seu espírito.
Quero referir-me a D. António Barroso, que foi um dos maiores bispos portugueses.
As comemorações centenárias do seu nascimento, realizadas na fidalga cidade minhota de Barcelos e na encantadora aldeia de Remelhe, sua terra natal, promovidas pela Câmara Municipal daquele concelho, resultaram numa manifestação de dulcíssimo encanto espiritual de incomparável beleza, a que se associaram o Governo da Nação, com a presença do Sr. Ministro do Ultramar, os mais altos dignitários da Igreja, os representantes da alta cultura e o povo, sempre pronto a fazer justiça a quem é digno dela.
A vida do grande pioneiro da Igreja – facho de luz brilhante na escuridão de uma noite de trevas – tomou proporções lendárias pela sua ação notabilíssima ao serviço da Pátria e do Evangelho.
Deus, na sua infinita misericórdia, fez esse homem detentor de todas as virtudes, as mais raras e as mais nobres; o mais valoroso e o mais corajoso soldado da sua milícia, na luta apologética e doutrinária sustentada na pregação da paz, do amor, da caridade, que ele largamente difundiu e praticou. Como grande missionário, o seu mais elevado título, pela projeção justificadamente adquirida, foi D. António Barroso um grande português, herói consagrado da nossa epopeia ultramarina, que a Nação, em terras longínquas da Ásia e da África, prestou os mais assinalados serviços. Viveu para a sua pátria como viveu para a Igreja, sabendo engrandecê-la e honrá-la. Os homens tornam-se verdadeiramente grandes quando sabem lutar, intemerata e sinceramente, pelos grandes ideais que abraçaram com carinho, com amor e com paixão.
E o grande bispo do Porto, na tarefa magnifica de dilatar a Fé e o Império, encarnou gloriosamente o papel de soldado e missionário, levando o seu apostolado a todas as regiões onde havia necessidade de ser ouvida e escutada a palavra de Deus e respeitados o nome e a bandeira de Portugal. A sua ação missionária, coroa valiosa da maior glória sacerdotal, era Angola, em Moçambique e na Índia ficou brilhantemente documentada. Mas foi especialmente no Congo que a sua atividade, o seu esforço, a sua coragem e a sua fé obraram prodígios na evangelização dos povos, a quem abnegadamente se deu e serviu. E ali, nesse território em desagregação iminente e perigosa, batido pelo vento da desnacionalização, soube, como os grandes colonialistas, no número dos quais enfileira, impor pela sua ação enérgica e paternal os direitos da soberania portuguesa. Ele o afirma dizendo: «Tudo ali eram ruínas. A catedral havia ruído. Todo o deslumbre da nossa formosa língua desaparecera completamente. Era sinistro! Quadro horroroso: o passado morrera! Como ressuscitá-lo? Nunca a cruz mutilada de Alexandre Herculano me lembrou tanto como ao ver Deus e Portugal mortos na alma dos pretos». Mas o milagre da ressurreição operou-o o grande bispo, sabendo impor ao rei do Congo e aos seus súbditos o nome de Portugal. Obra duma grande personalidade, cuja alma cristianíssima atravessa a vida, alcança os paramos do infinito, aproximando-se de Deus, no seu eterno destino, orando em seu louvor, pedindo a proteção para a sua pátria! E foi ouvido na sua súplica. E elevou-se cada vez mais no desempenho da missão civilizadora, educadora, altamente dignificante da condição humana em defesa dos preceitos do Evangelho, que difundiu e ensinou com o seu verbo eloquente, por todas as províncias ultramarinas no nosso império.
D. António Barroso foi mais tarde sagrado bispo da diocese do Porto e grande se revelou também no seu alto sacerdócio. Querido, respeitado e amado por todos quantos sentiram a chama viva da Fé, que ele sabia acender e animar na alma do povo. Infinitamente bom, jamais negou proteção a todos quantos dele se abeiravam e lha pediam.
O sacerdote de Cristo, que lutou apaixonadamente por Deus e pela Pátria, e que, subindo o seu calvário, arrostou com todos os perigos e com todas as contrariedades, soube santamente viver com resignação e coragem as agruras do exílio e as horas amargas da prisão. O bispo missionário, maltratado, perseguido e desterrado, sem outra culpa que não fosse a fidelidade às leis e às doutrinas da Igreja, imutável nos seus postulados e vitoriosa na sua ação, chama abrasando almas sedentas de fé, vive hoje na memória de todos os portugueses. E o bronze e o granito do seu monumento erigido no coração de Barcelos recordarão a obra de caridade, fé e amor de um notável ministro da Igreja.
Mas não basta o seu monumento ou as brilhantes teses apresentadas e discutidas no Congresso Missionário realizado em Barcelos para satisfazer aspirações e anseios bem justificados, honrando e glorificando a insigne figura desse prestigioso ministro de Cristo.
O Seminário dos Carvalhos, magnifico edifício de admirável localização, que o cardeal D. Américo mandou edificar à custa dos maiores sacrifícios materiais; grande escola-internato para a formação de sacerdotes, obedecendo a todos os requisitos necessários à alta missão para que foi criado e a que D. António Barroso dedicava um carinho e um interesse bem compreensível, foi em triste época de perseguição religiosa tirado aos seus legítimos possuidores com o mais absoluto desprezo pela hierarquia eclesiástica. Pois, Sr. Presidente, as comemorações que acabam de realizar-se, e a que se associou o Governo da Nação, não teriam a finalidade que lhes é devida sem a reparação para a qual chamamos a atenção dos altos poderes do Estado.
Interpretando o sentir do Congresso Missionário e em nome da lei ultrajada e da justiça ofendida, nós pedimos seja restituída aos seus legítimos donos, em toda a sua plenitude, a propriedade desse seminário, que, contra todos os preceitos da razão, da moral e da justiça, lhe havia sido confiscada.
Entregue-se à diocese do Porto o seu seminário, o Seminário dos Carvalhos, e o espirito do grande bispo, que deu à Pátria honra e glória, continuará velando por nós, na alta missão do robustecimento da Fé e engrandecimento do Império. Disse.” (in: Site Debates Parlamentares, Diário das Sessões, nº 54).
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São João Paulo II, em 1991 no aeroporto da Portela, renovou-nos o desafio: “Portugal, convoco-te para a missão (…) As sucessivas gerações dos vossos maiores buscaram no Evangelho a inspiração para as suas vidas e legaram-vos esta cultura constantemente enriquecida pelo cruzamento da fé cristã com as várias populações que fizeram a história da Europa e do Mundo (…) Um dia, Portugal foi púlpito da Boa Nova de Jesus Cristo para o mundo, levada para longe em frágeis caravelas por arautos impelidos pelo sopro do Espírito. Hoje venho aqui para, da mesma tribuna, convocar todo o Povo de Deus à evangelização do mundo (…) Portugal, convoco-te para a missão”.
Antonino Dias
Portalegre-Castelo Branco, 18-10-2019.