Consta que Santa Cecília cantava como um rouxinol. Não como o rouxinol mecânico do conto de Andersen, mas como o verdadeiro, o que inspirou a ópera de Igor Stravinsky. É invocada como padroeira dos músicos e da música, morreu a cantar. Cristã convicta e convincente, a força da sua palavra e do seu testemunho levou muitos à conversão. Foi martirizada pelo ano 230 e a sua festa celebra-se a 22 de novembro. Quem dera que houvesse celebridades do canto e da música a cantar com paixão, com arte e com beleza, os incríveis e sempre atuais feitos do maior revolucionário de todos os tempos. Não para distrair e animar a malta, como no Titanic, conscientes de que todos acabariam por naufragar. Mas para que a barca de Pedro se liberte deste iceberg que é a indiferença dos seus tripulantes e passageiros que deixaram de ser fermento, luz e sal, ignorando que ela tem de chegar a bom porto com a colaboração de todos.
Na cultura e na ciência, nas artes e nos ofícios, nas escolas e nas universidades, na política e na economia, nas empresas e no desporto, no jornalismo e nas redes sociais, onde quer que for, se, aí, cada cristão, fosse qual fosse o seu mister, agisse naturalmente como cristão, testemunhando Aquele que é o caminho a verdade e a vida, como o mundo seria diferente, mais justo e mais humano, transformado a partir de dentro, a partir do coração de cada pessoa!
A música é uma linguagem universal, a mais completa de todas, atinge o homem no seu todo, ajuda-o a exprimir-se melhor. Nela entra a imaginação e a sensibilidade, a inteligência e a memória, os sentimentos e as emoções. Tem valor artístico, cultural, social e educativo, desenvolve o sentido do belo. Lutero escreveu que a música "é uma maneira de disciplina que torna o homem melhor, mais paciente e razoável. Vem de Deus e não dos homens. Por isso, não receio de o dizer: depois da teologia, nenhuma arte lhe pode ser igualada”. Na liturgia, também a música e o canto ocupam um lugar privilegiado. Não são um adorno, um anexo, são um elemento constitutivo, a própria liturgia. Na Constituição sobre a Sagrada Liturgia diz-se que, na liturgia, "Deus fala ao seu povo… E o povo responde a Deus, ora com cânticos ora com orações". E o modo próprio do povo participar é "sobretudo nas respostas, nas orações e no canto".
“Quanta gente foi tocada no profundo de suas almas ao ouvir música sacra; e quantos se sentiram novamente atraídos por Deus pela beleza da música litúrgica! Vocês que têm o dom do canto podem fazer cantar o coração de tanta gente nas celebrações litúrgicas”, afirmava Bento XVI. De facto, quando a música e o canto litúrgico têm qualidade e beleza, tornam-se sinal do sagrado, emprestam voz ao silêncio, tornam-se a arte de exprimir o que a voz não é capaz de dizer, conduzem à oração, manifestam a fé de quem canta e transmitem a fé a outros, revelam o coração da pessoa e a qualidade da sua relação com Deus, são uma graça divina, ajudam a passar a mensagem dos textos bíblicos aos diversos ambientes culturais. Uma das missões dos coros litúrgicos é colocar a assembleia a cantar, com arte e beleza, rezando. As nossas celebrações litúrgicas trazem-nos, não raro, ao pensamento a afirmação de Afonso Lopes Vieira: "Não me assusta demasiadamente que tantos portugueses não saibam ler; penaliza-me mais que não saibam cantar".
A Liturgia das Horas do dia de Santa Cecília traz um texto de Santo Agostinho que, dada a sua beleza e apelos, aqui recordo, em parte. Escreveu ele: “Cada qual pergunta como há de cantar ao Senhor. Canta para Ele, mas não cantes mal. Deus não quer ouvir um cântico que ofenda os seus ouvidos. Cantai bem, irmãos. Se te pedem que cantes para um bom apreciador de música de modo que lhe agrade, não te atreves a cantar se não tens preparação musical, pelo receio de lhe desagradar, porque um bom artista notará os defeitos que a qualquer outro passam despercebidos. Quem se atreverá a cantar para Deus, tão excelente conhecedor de cantores, juiz tão completo e tão bom apreciador de música? Como poderás oferecer-lhe tão excelente audição de canto que em nada ofendas ouvidos tão perfeitos? Mas eis que Ele mesmo te sugere a maneira como lhe hás de cantar. Não andes à procura de palavras, como se com elas pudesses expressar aquilo que agrada a Deus. Canta com júbilo. Cantar bem para Deus é cantar com júbilo. Que é cantar com júbilo? Compreender e não poder explicar com palavras o que se canta com o coração. Os que cantam na colheita, na vindima ou em qualquer trabalho intenso, começam a exultar de alegria com as palavras do cântico; mas depois, quando cresce a emoção, sentem que já não podem explicá-la por palavras, desprendem-se da letra das palavras e entregam-se totalmente à melodia jubilosa. O “júbilo” é aquela melodia que traduz a incapacidade de exprimir por palavras o que sente o coração. E a quem pode consagrar-se este cântico de júbilo senão ao Deus inefável? É realmente inefável aquele que não podes dar a conhecer por palavras. E se não tens palavras para o dar a conhecer e não deves permanecer calado, nada mais te resta senão cantar com júbilo. Sim, para que o coração possa expandir a imensidade superabundante da sua alegria sem se ver coartado pelas sílabas das palavras, cantai ao Senhor com arte e com júbilo”.
Antonino Dias
Portalegre-Castelo Branco, 22-11-2024.