ABERTURA DO ANO JUBILAR DA DIOCESE

475 ANOS DA FUNDAÇÃO

21-08-2024

 

A Diocese faz 475 anos de vida, já sabemos, já ouvimos e lemos. Eu próprio já publiquei algo sobre isso. Quem mais o deseje fazer o fará com certeza conforme o entender e o contributo que deseje prestar a esta comemoração. Celebramos esta efeméride da forma que, pastoralmente, se entendeu ser a mais útil e necessária. Não tanto com iniciativas externas de encher o olho. Entendemos que a melhor celebração será sempre aquela que possa mexer connosco a partir de dentro, de dentro da mente e do coração, experimentando a infinita misericórdia de Deus também através da Indulgência Plenária com que o Santo Padre, através dos serviços da sua Penitenciaria Apostólica nos concedeu poder lucrar, verificadas as condições requeridas. A este mexer connosco a partir de dentro, porém, o ruído não faz bem, e o bem que isso é ou pode ser para cada um, não faz ruído, mas, se for sincero, pode desinstalar e comprometer, pode rasgar horizontes, estradas e autoestradas a fazer entender que esta coisa de ser Diocese é uma responsabilidade que cabe a todos os batizados. No nosso caso, desde Salvaterra do Extremo, em Idanha-a-Nova, a Santa Margarida da Coutada, em Constância, desde Cambas, em Oleiros, do outro lado do Zêzere, a Degolados, em Campo Maior. De facto, é importante que todos os diocesanos se sintam a celebrar e possam ter uma maior consciência da realidade diocesana, isto é, da situação em que nos encontramos no âmbito da vivência e da transmissão da fé. Há 475 anos que somos diocese. Imaginamos a alegria dessa primeira hora com a publicação da Bula do Papa que delimitou o seu território, com a nomeação do seu primeiro Bispo e com a escolha duma igreja que lhe servisse de sede até à construção desta catedral. Não acreditamos que tudo fosse um mar de rosas. Sabemos, porém, que a história diocesana foi-se fazendo, inclusive com o alargamento do seu território devido à reestruturação das Dioceses em Portugal. E aqui estamos. Muita coisa mudou, outras mudanças continuam em curso acelerado, e o futuro interpela-nos, pois depende muito da maneira como nós vivermos e enfrentarmos profeticamente o presente. A maneira de ser e estar mudaram, os interesses juvenis e as solicitações quotidianas mudaram, a família atravessa uma grande crise de identidade, a escola e o seu papel no campo do ensino e da educação mudaram, nós mudamos, as prioridades existenciais são outras, os centros de interesse outros são, tudo muda porque o mundo muda. Se tudo mudou ou está em processo de mudança, seria muito estranho e inútil que alguém firmasse os pés no chão a dizer que daqui não saio daqui ninguém me tira, querendo travar a mudança. A mudança estará sempre em curso, é no meio dela que temos de saber viver, que temos de saber ler os sinais dos tempos!

Por isso, é-nos pedido que saibamos viver a tempo o nosso próprio tempo, construindo o futuro. Se a pastoral não muda o estilo, o ardor, a linguagem e as formas de apresentar o seu conteúdo, que outro não é senão a Boa-Nova; se a família, a paróquia, a irmandade, a confraria, o movimento de apostolado, a comunicação social diocesana e paroquial, os serviços ministeriais, se todas estas instâncias não se preocupam para que, no meio da mudança e das suas turbulências, se não se preocupam e ocupam em ser essencialmente um lugar de formação cristã, um espaço para o exercício da fé e da caridade, se, pela palavra e pelo testemunho, não ensinam a crer nem são uma espécie de laboratório gerador da fé, se não rezam nem ensinam a rezar, se não provocam o encontro pessoal na amizade com Cristo, se não formam nem comprometem os seus fiéis, membros ou associados, a cuidarem uns dos outros, se abandonam os vivos e apenas rezam pelos mortos, ou se apenas estão à esperam que os vivos morram par depois lhe rezarem pela alma, se, se… nada disso será uma verdadeira escola de comunhão e ação.

Mesmo que muitos batizados ainda frequentem a igreja, não serei demasiadamente atrevido se afirmar que a linguagem e a gramática da fé, para grande parte deles, já não passa duma linguagem ininteligível, uma área da qual só sabem cantarolar a música mas desconhecem a letra e o seu conteúdo. Não podemos viver iludidos! Fazer o que se faz porque sempre assim se fez, é inútil e frustrante. A habituação anestesia, não convém. Se a vida é feita de rotinas, as rotinas da vida não podem fazer da vida uma rotineirice sem sentido nem sabor.

Muito gostaríamos que a celebração deste aniversário jubilar da Diocese fosse, de facto, festejado com a coragem de avaliar, individual e conjuntamente, até que ponto se está a cuidar da formação cristã – formação cristã individual, familiar, das pessoas constituídas em grupo ou em associação de fiéis, da comunidade cristã em geral -, até que ponto se aproveitam todos os recursos humanos capazes de ajudar a formar na cultura da fé, até que ponto a pastoral tem de ser mais criativa e provocante. Não só em programas bem sonhados, delineados e passados a papel. Isso é importante, mas de pouco servirão se os agentes da pastoral no terreno não os levarem a cabo também com criatividade e provocação. Desprezar ou alimentar uma religiosidade popular sem preocupação pela formação cristã e pela purificação contínua dessa riqueza tradicional é não aceitar os desafios que a Igreja e a Evangelização nos propõem. Manter de pé estruturas porque são históricas, mas sem lhes garantir a vida e as razões fundacionais da sua existência, não passa de os aguentar com cuidados paliativos numa permanente agonia com morte à vista. De facto, sem corresponsabilidade a nível pessoal, familiar e paroquial, de ‘todos, todos, todos’, sem o gosto pela criatividade e a inovação pastoral, em comunhão dinâmica, dificilmente viveremos o presente e seremos capazes de enfrentar as mudança de época, com todos os seus desafios. A fé deixou de ser uma opção hereditária, passou a ser uma decisão que é preciso preparar e promover pelo testemunho e colaboração de todos, em comunidades dinâmicas e abertas à corresponsabilidade e conversão. Todos somos desafiados a rever o imaginário pastoral que nos orienta e a reconhecer, com coragem, a necessidade de renunciar ao que só entretém e até pode encher o ego, mas não ajuda.

Os especialistas nessas matérias vão rasgando alguns caminhos de renovação diocesana, paroquial e pastoral. A máquina, porém, é pesada e lenta. Exige muita vontade de o fazer e total dedicação, exige abertura da parte das comunidades, arriscando a mudança, sem resistências indevidas. E tudo isso sem desvirtuar ou adocicar o Evangelho, sem se descer da cruz para agradar a quem quer que seja, sem nos sentirmos dispensados de anunciar e testemunhar o que acreditamos, sem nos julgarmos com direitos indevidos diante de Deus e dos outros ou nos arvorarmos em vítimas injustiçadas.

As leituras desta celebração, que são as leituras do dia, ajudam-nos a iniciar esta avaliação do nosso desempenho como cristãos diocesanos. Ouvimos a parábola dos trabalhadores da vinha. Melhor dizendo: a parábola do proprietário generoso. Este proprietário da vinha contrata, a diversas horas do dia, vários trabalhadores para a sua vinha. Dá a impressão que tem pressa, muita pressa, e que não se cansa de convidar até que o trabalho esteja acabado. Levanta-se cedo e cedo sai a fazer-se encontrado convidando quem encontra. Admira-se por alguns lhe terem dito que ninguém os tinha contratado, não quer que ninguém esteja inativo, que ninguém falte ao trabalho, que ninguém se julgue não convidado, que ninguém seja um mero espectador.

O profeta Ezequiel ajuda-nos a compreender o porquê desta parábola na boca de Jesus. Os líderes de Israel falharam. A metáfora do pastoreio, nada meiga nem simpática para os líderes políticos e religiosos de Israel, ilustra bem como tais líderes contribuíram para a infidelidade, a fraqueza e a dispersão do povo. Faltou ao povo uma liderança capaz, uma liderança dedicada, sábia e justa, faltou um serviço rigoroso no cuidado com o seu bem-estar, faltou uma autoridade cifrada em termos de comunhão e não de poder, uma autoridade conquistada pela fidelidade ao Senhor e centrada n’Ele, uma fidelidade que garantisse aos líderes serem fiéis à sua missão e às pessoas sob os seus cuidados prosperarem também elas em fidelidade a Deus e aos homens. Os líderes esqueceram e desvirtuaram a sua missão, criaram em si e no povo, uma falsa ideia Deus, não raro agiram como se fossem eles o modelo a seguir, o centro de tudo, os donos do próprio povo.

No tempo de Jesus, sobretudo os fariseus, permaneciam eivados desta mentalidade e procedimento. A imagem de Deus que eles mantinham e faziam passar ao povo, não os deixava ver com bons olhos que Jesus chamasse e acolhesse a todos, pecadores e estrangeiros, e todos recebessem igual consideração, sem exceção. Jesus sente necessidade de colocar os pontos nos is e de lhes dizer que o proceder de Deus é diferente. Não é como o deles, não é como eles o ensinam, não é como eles pensam que é ou querem que ele seja. E conta-lhes esta parábola para lhes dizer que o procedimento de Deus, simbolizado naquele proprietário da vinha, é gratuito e generoso, sendo nesse mesmo proceder que ele, Jesus, se apoia para fazer o que faz. Ele veio ao encontro de todos, sobretudo daqueles que eles, injustamente, tinham como escória da sociedade, mas que Deus ama por igual. Na parábola, os últimos convidados trabalharam apenas uma hora e os primeiros contestaram por terem sido pagos por igual, sentem-se injustiçados pela generosidade do proprietário, que, sem ser injusto, apenas quis ser generoso, dando aos últimos o mesmo que tinha combinado com os primeiros. Isto vai contra a lógica dos primeiros, contra a religião e a moral do mérito que eles ensinavam e patrocinavam. Fechados à aceitação do irmão e apoiando-se no mero cumprimento da lei, sentiam-se no direito de reivindicar de Deus a salvação. Não entendiam a misericórdia de Deus que ultrapassa toda a justiça humana. Sentiam-se com o monopólio da exclusividade, segregavam quem não era dos seus, como que querendo manipular a liberdade de Deus de acordo com os seus próprios egoísmos e sentindo-se credores diante de Deus. Por causa dessa mentalidade, o povo esqueceu o Deus bom, o Deus pai e amigo fiel, anunciado pelos profetas, substituindo-o por um Deus distante, legislador e juiz, para eles incapaz de pactuar com que os primeiros venham a ser os últimos e os últimos os primeiros. O que é certo é que Deus nunca se cansa de ir ao encontro do homem, mesmo quando este falha em todos os encontros ou recusa qualquer convite chegue ele a que horas chegar.

São Mateus pega nesta parábola de Jesus para fazer uma catequese à comunidade cristã, composta na sua maioria por judeus convertidos ao cristianismo. Era preciso que eles entendessem e aceitassem que o novo povo de Deus é composto não só por eles, os judeus, mas por todos os outros povos, também eles chamados à salvação. Chamado desde a primeira hora é, sem dúvida, todo o povo israelita, herdeiro das promessas de Deus. Mas Jesus veio para todos os povos, pelos quais também ofereceu a sua vida, convidando-os a ter parte no reino da salvação. É precisamente por isso que nós estamos aqui, cada um com a sua história e o seu tempo, mas todos convidados pela infinita misericórdia de Deus. No entanto, a mentalidade continua difícil de mudar. É possível encontrar cristãos a manifestar sintomas de quem se sente injustiçado perante a infinita bondade e misericórdia de Deus. Poderemos encontrar quem se sinta injustiçado, quem sinta inveja ou ciúmes daqueles que, tendo-se convertido à última da hora, tendo trabalhado menos na vinha do Senhor e desfrutado mais da vida, são igualmente acolhidos, aplaudidos e integrados.

Mas não é precisamente o chamamento feito desde a primeira hora que constitui a melhor recompensa que nos é dada? Não serão mais privilegiados aqueles que entraram para a vinha do Senhor desde a primeira hora? Sentirão algum cansaço, talvez, mas foram eles que desfrutaram desde o romper da manhã da presença do Senhor, da sua intimidade, da escuta da sua palavra, do seu convívio. Os que chegam mais tarde, os que sempre se desculpam ou se apresentam sempre com atraso ao encontro, os que perdem todas as oportunidades que lhe são oferecidas para serem felizes, para desfrutarem primeiro e mais tempo dos dons do Senhor, esses é que, por certo, serão os mais prejudicados.

Na vinha do Senhor não se entra, não se trabalha, não se pratica o bem para ter direito a um prémio, para reivindicar direitos. Seria até egoísmo querer servir-se do irmão pobre e necessitado para acumular méritos diante de Deus. O Cristão ama porque descobriu que é belo amar desinteressadamente, como o Pai ama, como o Filho nos amou. Faz o bem pelo prazer de fazer o bem. Alegra-se e agradece por ter sido chamado para a vinha e ama os chamados da última hora, porque Deus é bom e a todos ama com amor gratuito. Essa é a sabedoria de Deus revelada por Jesus de que nos fala São Paulo na segunda leitura. Uma sabedoria que nasce da loucura da cruz e não se deixa enrolar pela sabedoria do mundo, nem corre atrás de mestres humanos como se eles tivessem a chave da felicidade e da realização plena. Conflitos, divisões, ciúmes e confronto nas comunidades cristãs, são sintomas da sabedoria do mundo e prejudicam a vocação de se dar testemunho de Deus e o tornarem presente no mundo, como Paulo diz aos Coríntios. Somos templos de Deus e o Espírito de Deus mora em nós. Se o Templo de Jerusalém era o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu Povo, agora, considera Paulo, é a comunidade cristã que é o verdadeiro Templo o verdadeiro lugar onde Deus reside, onde ele se manifesta aos homens e onde ele oferece a salvação. Ora, ser Templo de Deus, ser lugar onde Deus reside no mundo e onde os homens encontram Deus, não é compatível com uma existência onde a preocupação fundamental é seguir a sabedoria do mundo. Só o amor, a doação, a entrega, o serviço, geram vida plena e fazem nascer o Homem Novo que dá testemunho e fala de um Deus cheio de amor e de misericórdia, que tem um projeto de salvação e libertação para oferecer. Não desistamos de o viver e anunciar, com alegria e esperança, dando as mãos! O Senhor confiou em nós e enviou-nos em seu nome!

 

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