Lá para os lados de Deu-la-Deu Martins e arredores, quando as coisas já esqueceram até ao diabo, se alguém as quer lembrar, outro é capaz de retorquir que isso já nem sequer ao Menino Jesus interessa, pois é do tempo dos afonsinhos, isto é, dum passado longínquo. É possível que o dito tenha alguma coisa a ver com os nossos primeiros Afonsos, com aqueles que, acreditando, lutaram por este torrão pátrio que se esticou para além da Taprobana. Muito antes dos afonsinhos, porém, outros, enfrentando adamastores reais, também conquistaram novos mundos e renovaram mentalidades, refizeram corações partidos e espevitaram os mais saudáveis, dando mais sentido à vida e às coisas da vida. No entanto, o pó do tempo e das ideias, o desalinho de jeitos e feitios, à mistura com excessos de zelo e de zelos mal entendidos, fez-lhes sentir a necessidade de se escutarem para espanar o pó uns aos outros e acertar as agulhas e os alfinetes, como bons peregrinos da esperança. Para lhes agradecer o testemunho que nos deixaram – de que é falando que as pessoas se entendem -, celebramos este ano os 1.700 anos dessa sua iniciativa: o primeiro Concílio Ecuménico. Aconteceu de 20 de maio a 25 de julho do ano 325, em Niceia, atual cidade Iznik, na Turquia. Nele participaram bispos de todas as regiões em que havia cristãos, mais de trezentas pessoas coordenadas pelo Bispo de Córdoba, pois, devido à idade, o de Roma fez-se representar.

O imperador Constantino, em 313, pelo Edito de Milão, decretara o fim da perseguição religiosa, garantindo a legitimidade, não só do cristianismo, mas de todas as religiões do império. Mais tarde, em 380, o imperador Teodósio I, com o Edito de Tessalónica, fez do Cristianismo a religião oficial do Império. À medida que os cristãos aumentavam, a Igreja, respeitando a diversidade, debatia-se, cada vez mais, com a questão da inculturação da fé nos diferentes contextos culturais e políticos e com aqueles que se sentiam mais papistas que o Papa e pregavam erros doutrinais, alguns deles da simpatia do imperador. Um dos principais e nada bom de assoar, foi Ario, um padre que negava a verdadeira divindade de Jesus Cristo e que até já fora admoestado, com dureza, no sínodo dos bispos do Egito. Com os seus pios parenéticos e seguidores em crescendo, as divisões ameaçavam. A Igreja, para atalhar tais situações a tempo e horas, sentia necessidade de se ouvir e discernir bem os caminhos que o Espírito lhe inspirasse, em fidelidade à sua nobre missão de evangelizar. Por sua vez, o imperador Constantino, depois de ter limpado o sebo a quem com ele compartilhava o poder em regime de Tetrarquia, ficou imperador único. Tendo unificado politicamente o império, via com bons olhos que a Igreja, em crescimento, estivesse unida e colaborasse nesse propósito. Por isso, abraçou a ideia, facilitou a sua concretização, colocou à sua disposição os serviços do exército e ofereceu o seu palácio em Niceia, perto da sua residência em Nicomedia, para o realizar. Segundo afirmam os estudiosos dos documentos do Concílio, não se pode afirmar que Constantino fosse um protagonista direto da reconciliação das partes em disputa ou que tivesse feito valer as suas opiniões sobre as dos bispos ali reunidos. Ele não tinha capacidade teológica para dominar as questões que ali se debatiam e o que foi aprovado até foi contra as suas próprias inclinações que eram da linha de Ario. No entanto, tal como ainda hoje alguns fazem, quando percebeu que a barca de Caronte se encostava às margens da sua vida para lhe transportar a alma lá pelos rios Estige e Aqueronte, pediu os Sacramentos. Acabou por entender que, mais importante que a vitória sobre Magêncio na Batalha da Ponte Mílvia, melhor seria vencer a batalha da própria vida: ‘In hoc signo vinces’.

Portas dentro o Concílio, a imensa maioria dos participantes logo percebeu que a doutrina de Ario atraiçoava a fé recebida dos Apóstolos. Para evitar consequências menos boas, basearam-se no Credo batismal da Igreja de Cesareia e redigiram um texto que traduzisse a fé recebida desde as origens. Mais tarde, no Concílio de Constantinopla, em 381, este texto foi de novo apreciado, tendo resultado o Credo que hoje rezamos e ao qual chamamos Credo Niceno-Constantinopolitano ou apenas Credo Niceno. Além desta questão, outras estiveram em cima da mesa: como calcular a data da celebração da Páscoa, como reintegrar as pessoas que haviam abandonado a fé durante as perseguições, como contrapor algumas opiniões teológicas consideradas heréticas e outras questões referentes ao funcionamento interno da Igreja. Apesar de se ter concluído como é que a data da celebração da Páscoa deveria ser calculada, as interpretações posteriores fizeram com que fosse frequentemente marcada em datas diferentes no Oriente e no Ocidente. Em 2025, essas datas coincidem, a Páscoa será celebrada por todos na mesma data. Como estamos em ano jubilar e procuramos a unidade da Igreja, que bom seria se todos começássemos a celebrar a Páscoa na mesma data, todos os anos. Somos peregrinos da esperança: é falando que as pessoas se entendem. Nesta Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, rezemos para que todos nos entendamos e demos as mãos, com alegria e esperança.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 17-01-2025.

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