Conheci um senhor que gostava das importâncias sociais, muitos outros o conheceram. Ele mesmo foi importante a defender as causas da sua terra. Todos o estimavam e aplaudiam. Não raro, puxava por alguns trunfos, em jeito de correspondência recebida, para dizer que se relacionava com este e aquele e aqueloutro e mais o outro. Um desses trunfos era um cartãozinho que – dizia ele e ninguém duvidava -, Salazar lhe havia escrito, lá pelo que fosse, relacionado com algum dos seus serviços lá por aquelas terras do demo, onde Judas perdeu as botas e os cães são aplaudidos pela sua raça. Aquilo era um orgulho para ele e um gerador de ciúmes em gente da mesma estirpe, mas nada bafejada por tanta sorte e jeito. Um dia, Salazar e o seu séquito caíram da cadeira, e em desgraça. Desabou o mundo, desmantelou-se o império, borrifou-se o charme, impôs-se o virar da casaca! Ou não! Ele permaneceu sempre igual a si mesmo, era homem d’antes quebrar que torcer. Acredito que muitos outros – e mais alguns -, tivessem ficado com a paciência a pique e o Campo Pequeno no horizonte. Aqueles trunfos, a bater com ruído e brio no jogo da vida, passaram de importantes pedacinhos do céu a dolorosos nacos de inferno, com os seus donos a passarem de bestiais a bestas, espécime que era preciso denunciar e perseguir em prol do cheirinho e da beleza dos Cravos. Quem possuía e alardeava trunfos desses, ou parecidos, agora preferia não os ter, dizendo o mais que lhe apetecia e podia para se libertar do nada lisonjeiro epíteto de reacionário e fascista. E retesava-se no agora, ora cacarejando um sorriso com algumas palavras de inocência, ora invocando ou inventando algum revês com gente da governança, ora dizendo-se sofrido com uns apertões da pide ou com a perseguição duns bufos lá da aldeia. Sobretudo, procurava fazer crer que há muito se tinha divorciado dessa gente de tão bizarro e infame poder nacional! E vamos lá nós entender este mundo. Somos engraçados!
Lá, na primeira capital do país, a estátua do senhor Guimarães tem duas caras. Foi erguida ali, no berço da nacionalidade, em homenagem ao Senhor Baltazar Pacheco de Alcoforado. Nos ambientes do tu-a-tu, sem salamaleques, o senhor Baltazar dava-se pelo nome de Guimarães, por ser de lá natural. No Largo da Oliveira, eis que se vê, impávido e sereno, o Sr. Guimarães, sem vertigens no topo da fachada dos antigos Paços do Conselho ou antiga Biblioteca Municipal. Já lá o vi e voltei a ver e a rever, ouvindo e imaginando. Quem por lá passa e não repara na estátua é como quem vai a Roma e não vê o Papa. A estátua tem duas caras, uma no sítio dela, outra, sobre a barriga, por ali onde muitos insinuam ter o rei. As lendas são muitas e muito bem floreadas, mas ainda não acabaram de se inventar. Essa é a melhor vantagem da estátua e o nosso maior proveito. Cada cabeça cada sentença, depende de quem explicar os feitos deste herói bicaras. Mas sempre ficará sem saber se aquela estátua representa a fortaleça dos vimaranenses, cada um com a força de dois; se manifesta a força da fraqueza dos barcelenses na tomada de Ceuta; se a valente fuga do resto dos soldados portugueses da vergonha de Alcácer Quibir, por areias do deserto adentro; se a sorte do homenageado por ter escapado ao sorteio que destinava o primeiro a sacrificar para a sobrevivência dos outros; se o facto do mesmo senhor se ter pisgado do naufrágio, cuja nau surgira como uma bênção para os salvar, mas logo se deixou sumir, com eles lá dentro, escorregando pelas goelas do mar abaixo. Sobrou apenas o senhor Guimarães para desembuchar como foi o espetáculo! Pelo que se imagina, provou ser um verdadeiro homem de armas e bagagens nas difíceis andanças da vida. De D. Sebastião, isso, nem cheta se pode saber, é segredo. Um grande segredo que há de ser revelado em certa manhã de nevoeiro quando as galinhas tiverem dentes. Pela infelicidade da sorte que lhe coube, no sorteio entre eles, D. Sebastião foi o pitéu para a sobrevivência dos restantes, mas é segredo. Oram vejam lá se não apetece dar pancadaria até nas pedras do caminho!… Só o herói da guerra, da fuga, do sorteio e do naufrágio, o hercúleo Guimarães de armas enfardeladas, só ele é que mereceu a estátua com grande insistência e aplauso dos vimaranenses. Para merecer estas honras da pátria, porém, muito valeram os esforços sub-reptícios do Senhor Padre Inácio Laranjo, que de tudo sabia, mas nada podia dizer. Nem tampouco podia trazer à luz do dia o que, pela noite dentro, ia atiçando em favor do guindar a estátua a herói tão distinto. Mesmo assim, saiba o leitor que isto só é válido enquanto não vier outro e disser o contrário ou acrescentar mais um ponto! A estátua não esgota, desafia o imaginário. É arte! E a arte não é o que se vê, é o que se quiser ver ou imaginar, ora pois… A estátua equestre de São Longuinhos, no Bom Jesus, em Braga, também tem duas caras e algumas lendas. A coisa que mais se vai dizendo é que são as raparigas solteiras, apressadas em casar, quem por lá dá umas voltinhas à sua roda, bichanando umas preces a condizer… O resultado, porém, é desconhecido. Não gera curiosidade nem rouba a devoção das velhas casamenteiras a São Gonçalo de Amarante nem a dos jovens noivos a Santo António de Lisboa!
Sem ter perdido o fio à meada em título, voltemos lá, ao feitiço contra o feiticeiro antes que a noite chegue. Quando o rei Saúl, ferido na guerra, pediu ao escudeiro que acabasse com ele para não ficar prisioneiro, o escudeiro ficou apavorado. Tolhido de medo, negou-se a fazê-lo. Saúl não desistiu, puxou da espada, atirou-se sobre ela e matou-se. O medo do escudeiro, porém, logo desabrochou em enorme oportunidade para singrar na vida. Pôs-se em bicos de pés, inventou uma história e mentiu. Correu a dizer a David que fora ele quem matara o rei. David acreditou, mas não gostou de ouvir, acabou com ele (cf. 1Sam 31, 1-13). O mesmo aconteceu aos dois que mataram um filho de Saúl, enquanto dormia a sesta em sua casa, e vieram entusiasmados trazer-lhe a notícia (2Sam 4, 1-12).
Amã, um alto dignitário do rei Assuero, mandou preparar uma forca com vinte e cinco metros de altura para nela enforcar Mardoqueu. Fazia-lhe sombra, era preciso fazer-lhe a folha e despachá-lo quanto antes. Mas tudo se inverteu. Amã foi quem estreou a forca que mandara fazer para estrangular Mardoqueu (cf. Est 7, 1-10). O Prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, quis ganhar popularidade, prometendo um cemitério à sua cidade. Cumprida a promessa, ninguém morria para inaugurar a obra. Nem o cafajeste Zeca Diabo, com promessa de privilégios, conseguiu arranjar-lhe um qualquer defunto para que a efeméride acontecesse. Acabou por ser inaugurado por ele próprio, a quem Zeca Diabo desferrou três tiros por se sentir traído por ele. “Quem abre um buraco, nele cairá; quem rola uma pedra, para cima dele voltará” (Prov 26,27).
Antonino Dias
Portalegre-Castelo Branco, 05-07-2024.