Como cristãos, temos, pois, uma tarefa a cumprir. Nesta sociedade “cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenhamento civil, económico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do recto ordenamento das realidades humanas”.
Neste primeiro dia do ano civil, celebramos a solenidade litúrgica de Santa Maria, Mãe de Deus. Colocamos, assim, o novo ano sob a protecção maternal de Maria. Pelo seu “sim”, Ela entrou e intervém no Mistério da Salvação. O seu Filho, Jesus Cristo, único mediador, foi anunciado pelos profetas como “o Príncipe da Paz”. Aquando do seu nascimento, os Anjos louvaram a Deus dizendo; “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. A sua paz – uma paz distinta daquela que o mundo dá – foi a herança que nos deixou: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz”. A paz, porém, continua a ser uma espécie de miragem. Não existe. Falta no interior de muitas pessoas, de muitas famílias, de instituições e dos próprios Estados. Há tráfego de seres humanos, sobretudo de mulheres, há guerra, terrorismo, violência de muitas e variadas cores, massacres, falta de respeito pela vida. Só em 2009, nos hospitais portugueses, houve 19.572 abortos. Nos três principais hospitais da nossa Diocese, em 2009, foram vítimas de aborto 524 seres humanos, inocentes e indefesos: é uma espécie de guerra silenciosa, desigual e terrivelmente violenta. A Igreja, desde há quarenta e quatro anos a esta parte, associou à celebração desta Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus e mãe dos homens, o Dia Mundial da Paz, para que lembremos que a paz é um caminho a construir já que em Cristo todos somos irmãos.
A liberdade religiosa foi o tema central escolhido pelo Santo Padre Bento XVI para esta 44ª Jornada Mundial pela Paz. Afirma Bento XVI que “Na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isso significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana”.
“Os cristãos são, actualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé. Muitos suportam diariamente ofensas e vivem frequentemente em sobressalto por causa da sua procura da verdade”. Fazendo uma especial referência ao ataque contra a catedral siro-católica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Bagdad, no Iraque, onde no passado dia 31 de Outubro, foram assassinados dois sacerdotes e mais de cinquenta fiéis, quando se encontravam reunidos para a celebração da Santa Missa e se seguiram outros ataques a casas privadas, o Papa afirma “ser doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal”, o que considera “uma ameaça à segurança e à paz”. Lembra também as comunidades cristãs que sofrem “perseguições, discriminações, actos de violência e intolerância, particularmente na Ásia, na África, no Médio Oriente e de modo especial na Terra Santa”. Denuncia que “há formas mais silenciosas e sofisticadas de preconceito e oposição contra os crentes e os símbolos religiosos” e não esquece “a hostilidade e os preconceitos contra os cristãos pelo facto de estes pretenderem orientar a própria vida de modo coerente com os valores e os princípios expressos no Evangelho”. Formula votos para que a Europa saiba “reconciliar-se” com as suas próprias raízes cristãs, que ele considera “fundamentais para compreender o papel que teve, tem e pretende ter na história”.
Segundo o Santo Padre, o “direito à liberdade religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana, cuja natureza transcendente não deve ser ignorada ou negligenciada”; “está na origem da liberdade moral”; “goza de um estatuto especial entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa”; “não é património exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra”; “é um elemento imprescindível de um Estado de direito”; ´”é uma aquisição de civilização política e jurídica”; “realiza-se na relação com os outros”; “é condição para a busca da verdade e a verdade não se impõe pela violência mas pela força da própria verdade”; constitui “uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política”; não pode ser instrumentalizada “para mascarar interesses ocultos”.
A liberdade religiosa é, sem dúvida, de grande valor positivo para a sadia convivência dos povos. No “mundo globalizado, caracterizado por sociedades sempre mais multiétnicas e pluriconfessionais, as grandes religiões podem constituir um factor importante de unidade e paz para a família humana”. Os seus membros “são chamados a viver responsavelmente o próprio compromisso num contexto de liberdade”. Embora rejeitando “tudo aquilo que é contra a dignidade do homem e da mulher, é preciso, ao contrário, valer-se daquilo que resulta positivo para a convivência civil”.
A paz é um dom. Mas tudo o que é dom implica também tarefa humana, como sabemos. Bento XVI recorda-nos isso, quando diz que a “paz é um dom de Deus e, ao mesmo tempo, um projecto a realizar, nunca totalmente cumprido. Uma sociedade reconciliada com Deus está mais perto da paz, que não é simples ausência de guerra, nem mero fruto do predomínio militar ou económico, e menos ainda de astúcias enganadoras ou de hábeis manipulações. Pelo contrário, a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada”.
Como cristãos, temos, pois, uma tarefa a cumprir. Nesta sociedade “cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenhamento civil, económico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do recto ordenamento das realidades humanas”.
Caros fiéis, ouvimos que “a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada”.
Que este ano que hoje começa sob a protecção de Maria, Mãe de Deus, nos dê uma consciência cada vez maior de pertença à grande família humana, empenhando-nos na construção da liberdade religiosa como caminho para a paz. E não esqueçamos o que nos lembra Bento XVI: ”A família fundada sobre o matrimónio, expressão de união íntima e de complementaridade entre um homem e uma mulher, insere-se neste contexto como a primeira escola de formação e de crescimento social, cultural, moral e espiritual dos filhos, que deveriam encontrar sempre no pai e na mãe as primeiras testemunhas de uma vida orientada para a busca da verdade e para o amor de Deus”. “A família, primeira célula da sociedade humana, permanece o âmbito primário de formação para relações harmoniosas a todos os níveis de convivência humana, nacional e internacional. Esta é a estrada que se há-de sapientemente percorrer para a construção de um tecido social robusto e solidário, para preparar os jovens à assunção das próprias responsabilidades na vida, numa sociedade livre, num espírito de compreensão e de paz”. A família é, pois, o primeiro espaço onde se deve fomentar a cultura da paz através do diálogo, da tolerância, do respeito mútuo, da liberdade responsável, do acolhimento sincero.
Que a família cristã não abdique dos seus direitos e deveres de transmitir os verdadeiros valores em que acredita e os seus filhos possam ser ajudados e educados pelo testemunho de alegria e de responsabilidade existente no seu ambiente familiar e pela dinâmica da comunidade, civil e eclesial, em que estão ou devem estar inseridos.
Bom Ano para todos.
Antonino Dias